domingo, 6 de maio de 2007

Atire


Warren Ellis escreveu Shoot para ser publicada na edição 141 da Hellblazer, em 1999. Era uma história sobre massacres em escolas secundárias. Entre o roteiro e a publicação, depois que já haviam sido feitos os desenhos (de Phil Jimenez) e as letras, houve o massacre de Columbine, e a DC Comics censurou a HQ. Warren Ellis abandonou o título e a história nunca foi publicada, mas caiu na internet um ano depois. O responsável pela “pirataria” deixou um recado na página dizendo que era só a DC pedir que ele tirava a HQ do ar. Está até hoje.

Ellis tinha bastante orgulho dessa história, que é realmente ótima. Também é leitura interessante hoje, semanas depois do massacre de Virginia Tech. A HQ mostra o encontro de uma psicóloga, investigando massacres escolares para o Senado Americano, com John Constantine, que também estava interessado nos massacres, mas por razões pessoais (o filho de um amigo havia sido morto em um). A psicóloga não consegue entender porque ocorrem os massacres, apesar de toda informação – vídeos, fotos, relatórios – que juntou. Constantine a faz assistir com atenção um dos vídeos, e notar como os jovens, que seriam mortos em instantes, não reagiam, nem sequer se surpreendiam, com o colega que começava a atirar neles. A polêmica tese de Ellis era que estes massacres não eram assassinatos em massa; eram, do ponto de vista dos jovens, suicídios em massa. Eles não se alarmavam em morrer, muito pelo contrário. A culpa pelos massacres passava assim para a sociedade, o país, os pais, a família, o mundo, enfim, tudo que tirava daqueles jovens as expectativas e a esperança de uma vida melhor, e o garoto que atirava era tão vítima quanto os outros mortos. A psicóloga procurava algo para pôr a culpa, ou nas palavras de Constantine,
[...]a coisa que, subtraída da vida dos garotos, faria tudo ficar bem. Tire a música estranha, os videogames, o corante da comida, e então eles não irão mais atirar uns nos outros!

Constantine surtando de raiva

É uma postura parecida com a que há hoje em relação ao massacre de Virginia Tech. Tudo é considerado motivo: a origem coreana do rapaz (embora ele vivesse desde os três anos nos EUA e fosse, oficialmente e na prática, americano), os filmes que ele via, os jogos que jogava, os textos que escrevia – que “provam” a “maluquice” dele –, até mesmo essa conveniente “maluquice”, uma forma de isolá-lo como um caso a parte, uma fruta podre, e assim eximir a sociedade e o país da responsabilidade dessas macabras ocorrências. Na primeira vez que li a HQ, achei exagerado o tanto de massacres que a psicóloga investigava, tipo uns dois por mês. Mas, na esteira deste último massacre, vi uma estatística de que morrem 200 pessoas por ano em crimes desse tipo nos EUA. Quer dizer, dificilmente o rapaz de Virginia Tech é um caso isolado. Estes massacres já são quase parte da cultura americana, como o hamburguer, o basquete e a liberdade para possuir armas.


A psicóloga divagando.

Em certo ponto da HQ, antes de encontrar John Constantine, a psicóloga divaga:
Como decidir o que culpar? Culpar os pais por possuírem armas em casa? Não sem culpar a Constituição e puxar todo o novelo da NRA (National Rifle Association).
A mesma discussão de agora. De lá prá cá quem condena a excessiva facilidade americana para se conseguir armas já não pensa duas vezes em apontar essa causa para os massacres, como fez Michael Moore em “Tiros em Columbine”, mas o novelo desenrolado da NRA traz o contra-argumento de que se a facilidade fosse ainda maior alguém mais teria uma arma no local e abateria o rapaz. Curioso: no fundo estão defendendo que a solução para os massacres é matar mais gente ainda. Quem quer viver num lugar onde se pensa desse jeito? De repente a polêmica tese de Warren Ellis – que lhe valeu a censura por parte da DC – de que os massacres são na verdade suicídios em massa não parece mais tão descabida assim.

Na famosa história onde morre a namorada do Homem-Aranha, O Dia em que Gwen Stacy morreu, pela primeira vez deixavam o título da história no último quadrinho, para aumentar o impacto do ocorrido. Ellis faz uma sutil referência a essa HQ clássica ao deixar o título da história para a última página. No último quadrinho da história, uma coisa que só vi nessa HQ e em alguns capítulos do Lobo Solitário: leitura labial. Conseguimos ler, num vídeo que Constantine e a psicóloga estão vendo, os lábios de um garoto ao pedir para outro que lhe apontava uma arma: “Shoot”.

Atire.


Leitura labial em HQ. Cortesia de Warren Ellis.

Um comentário:

Escopo disse...

Olá Daniel,
vim parar aqui procurando registrar o nome Na Estante. Achei o blog super, adoro quadrinhos. Sou seu xará no wordpress (naestante.wordpress.com), apareça lá.
Abs,
Guilherme